O estudo da segurança e sua inserção nas relações internacionais
Introdução
A segurança ficou consagrada nos estudos realistas e permaneceu como um conceito acertado, até a proliferação de interpretações divergentes a partir das décadas de 1980, quando se iniciou o debate epistemológico em Relações Internacionais, suscitando críticas à inadequada atenção empregada aos possíveis significados de segurança. Assim sendo, o escopo deste artigo compromete-se com uma análise da evolução do conceito de segurança como forma de superar o reducionismo anacrônico e histórico realista que negligenciou a trajetória do termo.
Portanto, a primeira parte
deste artigo se encarrega em descrever a história do conceito de Segurança; a
segunda revisa a relação entre o conceito de segurança e as Relações
Internacionais; na terceira parte aborda-se a ampliação da agenda dos estudos
de Segurança, visitando conceitos formulados pela Escola de Copenhague e pela
Escola Galesa de Segurança. Conclui-se que a evolução do conceito de segurança
foi de uma condição do indivíduo a uma condição da comunidade internacional,
porém, os novos estudos de segurança resgatam o indivíduo como seu objecto
referencial.
Autor: Jaime Saia Académico Formado em Relações Internacionais |
A história de Segurança
A abordagem histórica de
segurança parte dos apontamentos da sua origem até o âmbito de articulação com
a política nacional e com as Relações Internacionais (RI), entendendo que o
conceito remonta períodos anteriores ao século XX. A partir do primeiro século
Antes de Cristo, iniciaram-se as forças que caracterizaram a segurança como um
conceito nem sempre positivo, o que se estendeu mesmo depois do Período Romano
(MCSWEENEY, 1999). Mais tarde, durante o Período Medieval, a segurança assumiu,
preponderantemente uma conotação negativa, o que se modifica apenas com Lutero
e Calvino, especialmente com advento do Certitudo.
Apesar do sentido negativo ser predominante, isso não significou a definição do
conceito, sendo este apenas um dos sentidos comportados pelo termo na época
(WÆVER, 2004). Na fase de transição do período medieval para o absolutismo
coube o questionamento: segurança para quem? A história pré-moderna demonstra
como este conceito tinha como objeto de referência o indivíduo, o que
paulatinamente se modificou com o nascimento dos Estados modernos, que passam a
assumir papel central para a segurança, aproximando-se do conceito contemporâneo.
Para Hobbes, a segurança estava para o indivíduo, apesar de o Estado ter de
garantir ao mesmo direito de autopreservação (WÆVER, 2004); Montesquieu, por
sua vez, entendia que a segurança se associava à liberdade política; enquanto
Adam Smith compreendia segurança na perspectiva de um ataque violento à pessoa
ou sua propriedade (MCSWEENEY, 1999). Compreende-se, na perspectiva destes
teóricos, que aos poucos a segurança emergiu à uma noção comum e social, “mas o
que o Estado deve fazer para garantir tal liberdade para o indivíduo não é
‘segurança’, mas a defesa: ‘o primeiro dever do soberano, o de proteger a
sociedade da violência e invasão de outras sociedades independentes’” (tradução
nossa) (MCSWEENEY, 1999, p. 18). Esta já evidente transição do objeto
referencial de segurança intensifica-se de uma maneira ainda mais significativa
a partir do século XVII. A próxima ramificação relevante do termo está na ideia
de segurança como objeto, como argumenta McSweeney (1999) quando afirma ser
possível identificar que também o modo de produção capitalista passou a
influenciar o substantivo ‘segurança’, passando a relacionar-se a objetos
(terras, propriedades, dinheiro), enquanto as fortificações e armas militares
do Estado eram tidas como meios pelos quais o objeto é protegido, para então
proteger o indivíduo. Até a Revolução Francesa, perdura a ideia do Estado como
meio de segurança, derivada da persistente visão crítica das propostas
revolucionárias, em especial do francês Condorcet, principal expoente da nova
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, onde confere ao cidadão,
sua propriedade e seus direitos a finalidade da segurança em sociedade (AMARAL,
2008). Até então, o conceito de segurança manteve-se em constante ampliação
polissêmica. O termo que outrora se origina da ideia de ausência estende-se à
ideia de certeza e até mesmo descuido. A segurança, todavia, mantinha-se como
atributo do indivíduo. Porém, com as aglomerações sociais do absolutismo, este
atributo amplia-se para a segurança da sociedade, segurança comum que deveria
ser garantida mediante ações de defesa do Estado. Ocorre que com advento das
guerras revolucionárias e Napoleônicas na Europa, a ideia de segurança coletiva
começa, ainda que timidamente, a sobrepor a ideia de segurança individual: “se
em Condorcet a segurança individual é requisito a segurança da comunidade
política, agora a segurança do Estado passaria a ser condição sine qua non para que se garantisse a
segurança individual” (AMARAL, 2008, p. 52). É neste período, portanto, que a
segurança da nação passa a tornar-se condição central para a segurança do
indivíduo. A segurança como um processo político coletivo, que por sua vez
concebe a sociedade como monolítica e indivisível, é o raciocínio central para
antropomorfização do Estado, equiparando-o a atributos antes exclusivamente
individuais. Dessa operação decorre a noção de que “a segurança nacional
(individual) dos Estados (homens) deva ser obtida por meio de processos
coletivos (internacionais)” (AMARAL, 2008, p. 53). A partir deste contexto
proeminente do século XIX, as bases do uso extensivo do conceito de segurança
nacional são lançadas, cabendo aos indivíduos muitas vezes se sacrificarem e
até mesmo abdicarem de seus direitos em prol da segurança do Estado-nação. Esse
movimento torna-se ainda mais evidente com o nascimento da geopolítica no
século XIX e com o advento das teorias expansionistas e deterministas. Autores
como Kant e ações como a defesa do equilíbrio de poder como forma de garantir a
estabilidade no século XIX, estruturado a partir do congresso de Viena (1815),
corroboram com a relação coordenada da segurança nacional por meio de processos
coletivos internacionais (AMARAL, 2008). Todavia, como a primeira metade do
concerto Europeu no decorrer do século XIX foi marcada pela busca de
consolidação interna dos Estados, manteve-se a ideia de segurança associada
mais a “paz doméstica” que propriamente aos assuntos internacionais. Com a
crescente interação entre as potências coloniais e o acirramento das disputas
com as nações recém-unificadas, organizava-se o palco para a eclosão da
Primeira Guerra Mundial e a consolidação da segurança no âmbito das RI. Após o
conflito, a segurança coletiva que marcou o período entre guerras no século XX
foi uma importante ideia para a consolidação do termo segurança à centralidade
do pensamento internacional. A retórica da segurança passou a ser utilizada
pelas potências vencedoras da Primeira Guerra, especialmente Grã-Bretanha e
França, como forma de embaçar a distinção entre o nacional e o internacional.
Neste entremear, a segurança, servindo ao nível coletivo de manutenção do status quo – antirrevisionista e
pacífico – acabaria por acarretar a garantia dos interesses de segurança
nacional (WÆVER, 2004). Paulatinamente, os departamentos de guerra
transformaram-se em departamentos de defesa, em função das alterações dos
tempos de paz. Em seguida, passam a denominar-se departamentos de segurança,
diretamente vinculados aos interesses nacionais (MCSWEENEY, 1999). Essa
modificação terminológica foi essencial para manutenção de esforços militares
duradouras e para as mobilizações civis-militares que demandaria a Segunda
Guerra Mundial (SGM). Neste momento, o projeto de segurança coletiva defendido
pelo presidente estadunidense Woodrow Wilson e materializado na Liga das
Nações, visando a coexistência entre vencedores e potenciais agressores, era
minado pela eclosão da SGM e diante deste abalo de credibilidade reforça-se a
retórica de segurança nacional (AMARAL, 2008). Conforme argumenta Wæver (2004,
p. 56) “‘segurança coletiva’ tornou-se um slogan
e uma abordagem; ‘segurança nacional’ foi estabelecida, tirando significado da
já estabelecida ‘segurança coletiva’” (tradução nossa). Logo, a derrocada do
prisma liberal da segurança coletiva contribuiu para trazer à tona a ideia de
segurança nacional e a proeminência realista na recém-estruturada ciência das
Relações Internacionais.
Ao longo e após a SGM, o conceito
de segurança nacional se enraizou nos Estados Unidos e se propagou por todo o
mundo, estreitando as relações entre as instituições agora relevantes para
lidar com as vulnerabilidades e inseguranças presentes e vindouras. Em seguida,
se inicia o período da Guerra Fria representando um mundo hostil, no qual a
única opção racional parecia ser uma política externa voltada para o temor da
sobrevivência física. A sobrevivência do indivíduo tornou-se definitivamente
vinculada à sobrevivência da nação, com altos preços a se pagar na ausência de
alternativas (MCSWEENEY, 1999). A difusão da doutrina do primado do Estado,
propagada ao longo da Guerra Fria no ocidente, tornou-se parasita dos cidadãos
que acreditavam em sua própria primazia como sujeito de segurança. Os Estados
apropriam-se definitivamente da capacidade de “cura” e operacionalizaram seus
projetos de segurança mediante as agências nacionais e seu corpo teórico,
consolidando a partir de então a inversão semântica iniciada com o fim das
Guerras Napoleônicas (AMARAL, 2008).
A relação entre Segurança e as Relações Internacionais
O fim da Primeira Guerra Mundial
foi a principal motivação para os estudos pioneiros em Relações internacionais,
apesar das reflexões sobre as relações entre diferentes comunidades políticas
remontarem a antiguidade. De imediato, “o surgimento do campo foi marcado pelo
idealismo político” (JATOBÁ, 2013, p. 8), porém, ao longo das décadas de 1920 e
1930 o tema da política internacional contrastou internacionalistas liberais e
realistas políticos, estabelecendo o primeiro grande debate teórico, que
perdurou até o final da Segunda Guerra Mundial. Paralelo a este debate, o
fracasso dos mecanismos coletivos de segurança idealizados pelos liberais e
instaurados após a Primeira Grande Guerra, frente a eclosão da SGM, foram
fatores garantidores da supremacia realista sobre a disciplina de RI (JATOBÁ,
2013). Sob este prisma teórico e de modo colateral aos esforços de paz,
avançou-se no entendimento de que “pensar as Relações Internacionais implicava
pensar a Guerra. Pensar a Guerra era pensar a violência. E pensar a violência
nos levaria a pensar a segurança” (AMARAL, 2008, p. 37-38). Nesse paralelo, as
sistematizações das Relações Internacionais confundiam-se com a subárea dos
estudos de Segurança, uma vez que a ortodoxia realista, de viés pragmático,
passou a influenciar significativos conceitos-chave e visões de mundo a partir
da sua centralidade na disciplina. A segurança ficou consagrada nos estudos
realistas como a “ausência de ameaças militares de origem externa à
sobrevivência ou à soberania do Estado-nação em um sistema internacional
anárquico” (AMARAL, 2008, p. 36), e durante a maior parte do período que
compreendeu a Guerra Fria, o conceito de segurança permaneceu como acertado até
a proliferação de interpretações divergentes a partir das décadas de 1980,
quando se iniciou o debate epistemológico em RI, suscitando críticas à
inadequada atenção empregada aos possíveis significados de segurança. O
realismo surge nas Relações Internacionais como uma vertente crítica ao
liberalismo do entre guerras que em sua formula idealista “recomendava a adoção
de um sistema de segurança coletiva, baseado na redução do poder militar dos
Estados, propondo uma estrutura militar alternativa conjunta, na qual estaria
representada toda a comunidade internacional” (VILLA; REIS, 2006, p. 24).
O objetivo explícito de criar uma
teoria realista da política internacional se materializa a partir de Morgenthau
(2003), sendo poder e interesse nacional suas variáveis determinantes. Baseado
na premissa de que a tendência a dominar é um componente de toda associação
humana, o teórico argumenta que a luta pelo poder na política internacional não
é um acidente histórico. Não haveria, portanto, nenhuma distinção significativa
entre a política interna e internacional, apenas distintas condições de
disputa, posto que, enquanto no ambiente doméstico existem normas e leis, o
âmbito internacional é anárquico, sendo a luta pelo poder permeada nas
instituições e expressa nas ações egoístas e individualistas dos Estados. Sendo
o interesse a força motriz da ação soberana, o equilíbrio de poder se torna o
mecanismo mais importante, logo, a força armada se torna o mais significante
fator material de uma nação por ter um grande peso no jogo antagônico entre
potências. Isso, em conjunto com a tática de dividir para conquistar mais a
garantia de compensações e alianças, conformam a estratégia da balança de
poder.
Assim, os Estados são
compreendidos como atores racionais que, em decorrência da natureza humana,
agem de modo a maximizar seus interesses em um sistema internacional anárquico
através do equilíbrio de poder. Observa-se, a partir de então, que das
premissas realistas emana uma ontologia individualista, materialista,
fundamentada na ideia de natureza humana a na escolha racional, que concebe a
força material como determinantes para uma política externa bem-sucedida
(WENDT, 2014).
A ampliação da agenda dos estudos da segurança
O quarto debate no campo das
Relações Internacionais situou-se no contexto Pós-Guerra Fria, mas resultou de
críticas que se desenvolviam antes deste momento. A natureza das RI entrou em
questão, o que representou uma expansão filosófica do nível de abstração da
disciplina em função do predomínio de questões metateóricas. As críticas ao
pensamento mainstream foram de
diversas ordens e originaram-se de diversas abordagens, denominadas pela
literatura de pós-positivistas, com destaque para a Teoria Crítica,
Construtivismo Social, Pós-modernismo, Pós-estruturalismo, as perspectivas de
gênero e o Pós-colonialismo, conformando o que se convencionou chamar de
teorias críticas de RI (JATOBÁ, 2013).
A Escola de Copenhague
O Copenhagen Peace Research
Institute (COPRI), fundado em 1985, sob a direção de Håkan Wiberg, conectou uma
variedade de orientações e interesses ao campo da Relações Internacionais, o
que destaca uma tentativa híbrida, não necessariamente pós-positivista, de
responder aos novos desafios com vistas a impulsionar a mudança para além dos
estudos tradicionalistas de segurança e paz (GUZZINI; JUNG, 2004). No que tange
a segurança internacional, o grupo assumiu o objetivo de influenciar o mainstream das RI, analisando o conceito
de segurança, desenvolvendo-o e reinserindo-o nas análises atuais. Também
rompeu com a lógica objetivista de segurança ao mesmo tempo que evitou reduzir
o conceito a uma lógica subjetiva arbitrária.
A segurança passou a ser
disseminada como um fenômeno intersubjetivo, cujo objeto de referência não se
concentra mais exclusivamente no Estado, mas também na sociedade que representa
a sustentação da soberania e identidade estatal (GUZZINI; JUNG, 2004). Apresentando
um recorte social-construtivista, Buzan, Wæver e Wilde (1998) condensaram os
principais conceitos e proposições da Escola de Copenhague, dentre os quais, a
concepção de segurança como uma condição emergencial que demanda o uso de
qualquer meio para bloquear uma possível ameaça. Uma questão de segurança
internacional emerge em função de uma ameaça existencial para determinado objeto,
comumente o Estado e seus componentes sociais e territoriais.
A identificação desta ameaça justifica a
adoção de medidas extraordinárias, legitimando o uso da força e abrindo espaço
para maior concentração de poder no Estado para lidar com a ameaça. Buzan,
Wæver e Wilde (1998) propõem que a ameaça existencial só pode ser compreendida
em relação ao objeto de referência, que varia de acordo com o nível de análise
e de acordo com os setores considerados, demandando uma investigação da
natureza da ameaça existencial.
No setor militar, o objeto de
referência é normalmente o Estado, podendo ser também alguma entidade política;
no setor político, a ameaça existencial é definida em termos de soberania e
muitas vezes também de ideologia; no setor social, o objeto referencial é em
larga escala a identidade coletiva, que pode existir de modo distinto e
paralelo ao Estado; no setor ambiental, o objeto referencial sob ameaça é
demasiadamente amplo, envolvendo desde espécies ameaçadas até certos
habitantes, incorrendo desde uma mínima até uma ampla escala, como a questão
das mudanças climáticas globais; por fim, no setor econômico empresas são
comumente tidas como objetos referenciais, assim como a economia nacional e o
mercado global assumem um grande potencial de sê-lo (BUZAN; WÆVER; WILDE,
1998).
Ainda no que concerne ao
entendimento da segurança, para os autores, ela é entendida como um movimento
que leva a política para além das regras estabelecidas, criando um certo tipo
especial de política. A securitização4, por sua vez, é um caso extremo de
politização5. Os assuntos podem transitar da não politização, até a politização
ou mesmo ao extremo da securitização a depender dos atores, local e momento.
Todavia, não apenas o Estado pode ser um agente securitizador, este movimento pode se originar em outras entidades
sociais. Serve à compreensão de que a segurança é usada como ferramenta para
designar uma questão como mais importante que outras e essa elevação à
prioridade absoluta é a razão pela qual a questão de segurança aparenta ter
critérios tão exigentes. O critério usado por Buzan, Weaver e Wilde (1998) para
definir a securitização assume que a mesma é constituída de um processo
intersubjetivo de estabelecimento de ameaça existencial. Se o ator consegue
fazer com que a audiência ou o público em geral tolere as violações de regras
em prol de esforços contra essa ameaça existencial, o que pode ser estudado
pelos discursos e constelações políticas, estamos diante de um caso concreto de
securitização.
A Escola Galesa de Segurança
A ampliação do debate crítico
sobre segurança conta com as proposições teóricas de Ken Booth e Richard Wyn
Jones, denominados por Weaver de Welsh School ou Escola Galesa de Segurança
(AZEVEDO, 2009). Foi imputada à Escola Galesa o termo Crítico devido ao esforço
dos autores em trazer ao campo da segurança internacional os insights da Escola
de Frankfurt, a crítica gramsciana de Robert Cox e a retomada de clássicos como
Karl Marx e Immanuel Kant.
A contribuição dos autores ao
campo da segurança antecede a formação da escola em meados dos anos 1990. Booth
(1991) referenciou as contribuições de Buzan (1983) atento as mudanças na
conjuntura internacional ao discorrer sobre o fator de milhões de pessoas no
mundo terem na figura do seus próprios Estados sua principal ameaça, assim como
a propensão de muitos governos de sofrerem atentados de suas próprias forças armadas
Tomando o Líbano e Caxemira como exemplos, Booth (1991, p. 319) asseverou que,
“a repressão dos direitos humanos, a rivalidade étnica e religiosa, o colapso
econômico e assim por diante podem criar uma instabilidade perigosa no nível
doméstico que, por sua vez, pode exacerbar as tensões que levam à violência,
refugiados e possivelmente conflitos entre Estados” (tradução nossa).
Segundo Booth (1991) existe uma relação
inversamente proporcional entre guerras e democracia, liberdade e justiça
social, dado que as minorias ricas do mundo que disfrutam de justiça social
parecem não lutarem entre si. Até mesmo os pensadores mais conservadores parecem
estar aceitando a relação, mesmo que minimamente, entre ordem mundial e justiça
social. Booth (2007) também compartilha da visão de Waever (2004) em sua teoria
da securitização, de que nomear algo em termo de segurança conforma um tipo
especial de atividade comunicativa com efeitos significativos ao ouvinte, o que
derivada da noção de speech act
concebida pelo filósofo J. L. Austin, como palavras “performativas”, entendidas
não apenas como declarações, mas como tipos de ação. Todavia, existe uma sutil
distinção entre Waever (2004) e Booth (2007) quanto ao teor de uma questão de
segurança.
De acordo com Booth (2007), uma
questão de segurança assume uma relação particular com “ameaças existenciais” e
“medidas extraordinárias”, que quando levadas a situações extremas podem vir a
conformar uma situação de securitização. Todavia, para o autor, segurança
assume uma conotação positiva, principalmente quando o autor defende que nomear
algo como segurança é atribuir a isso um significado político. Segurança como
um discurso político estaria, portanto, associada a prioridades. Assim, a
adoção de tempo, energia e recursos em prol da solução de um problema, não
necessariamente a ação para além das regras políticas normais, representaria um
caso de securitização. Uma vez atribuído o rótulo de segurança a um problema,
este se converte em prioridade social, tornando-se necessário redefinir a
concepção conservadora de segurança.
A operacionalização dos estudos
críticos de segurança com objetivo de desafiar a visão conservadora de
segurança, sustenta-se em dois conceitos principais: aprofundar (deeping) e
ampliar (broadening) os estudos de segurança. Destarte, “a segurança é
concebida compreensivamente, englobando teorias e práticas em múltiplos níveis
da sociedade, desde o individual até toda a espécie humana” (tradução nossa)
(BOOTH, 2004, p. 15).
Um importante esclarecimento
feito pelo autor defende que deeping
considera a segurança como um assunto de teoria política, levando em
consideração os assuntos estratégicos militares, sem se limitar a eles ou
tomando-os como fins em si mesmo, integrando os níveis sem negligenciar a
crescente quebra de barreiras entre assuntos domésticos e internacionais
(BOOTH, 2007). O broadening
representa uma função do aprofundamento, no sentido de ampliar a agenda para
além dos assuntos militares, trazendo a segurança para o campo da teoria
política (BOOTH, 2004). A concepção de Booth (1991) sobre segurança sustenta-se
na ideia de Kant de que devemos tomar os indivíduos como fins e não como meios.
Alega que muitas vezes é negligenciado o que Hadley Bull considerou como
primordial: uma ordem mundial entre os povos e não simplesmente uma ordem
internacional.
Portanto, trazer a segurança para
o campo da política só poderia fazer sentido a partir de um posicionamento
crítico que recupere a ideia da política como aberta e baseada na ética.
Convertendo o indivíduo a objeto referencial da segurança, Booth (2007)
finalmente propõe que segurança deve estar além dos esforços de sobrevivência
dos Estados. Acrescenta a ideia de survival
plus, ou seja, algo a mais em referência a liberdade e capacidade de
escolha dos cidadãos, garantidos pelas condições necessárias de bem-estar e uma
vida feliz na medida do possível.
A segurança é um meio, a
emancipação é a finalidade: essa é a máxima da Escola Galesa, assim como seu
principal desafio teórico e conceitual. Para Booth (1991) a emancipação está
diretamente relacionada com a igualdade da liberdade. O alcance integral do
ideal de emancipação depende da adoção da reciprocidade de direitos como um
princípio, baseado no entendimento intersubjetivo de que não sou realmente
livre até que todos sejam livres.
Conclusão
O histórico do termo “segurança”
é de alta relevância. Tendo visto sua evolução desde o período Antes de Cristo
até a actualidade, pode-se perceber que o termo é mais um daqueles que passam
por mutações consideráveis a partir de marcos históricos. Tendo passado por
muitas fases e questionamentos, o objecto de referência da segurança se mostrou
variável, passando do indivíduo, como na história pré-moderna, para diferentes
níveis como o do objeto, da sociedade, do Estado e do coletivo de Estados. A
partir daí ocorre a antropomorfização do Estado como forma de coordenar a
segurança nacional a partir de processos coletivos no meio internacional, o que
se intensifica no período Entre Guerras. A partir de então, a segurança como
meio de manutenção do status quo
garantiria a preservação dos interesses de segurança nacional. Com a
ineficiência da Liga das Nações como um projeto de segurança coletiva, há o
estabelecimento da segurança como nacional, sendo o indivíduo vinculado à
sobrevivência de seu Estado. A Crise dos Mísseis, porém, traz consigo o
contexto de “segurança internacional”, se difundindo cada vez mais com as
relações entre os dois lados do mundo. Assim, estreita-se o entendimento que
não se poderia pensar segurança nacional sem levar em consideração assuntos
internacionais. Paralelo aos factos históricos, as escolas de Relações
Internacionais faziam esforços para entender as movimentações conceituais de
segurança. A escola realista, uma das mais tradicionais debatedoras do termo,
passou a perder os debates pós-Guerra Fria principalmente após o surgimento de
novas escolas que se dispunham a discutir a segurança a partir da nova agenda
das RI.
A escola de Copenhague assim se caracterizou, pois expandiu o objecto de referência da segurança para além do Estado, passando a considerar a sociedade. Ainda, a escola entende que uma ameaça existencial à segurança pode ser analisada em diferentes níveis de análise. Destes, o individual e subestatal se mostra imprescindível, haja vista que estes últimos dialogam diretamente com a figura do Estado. A Escola Galesa compartilha da opinião da de Copenhague ao considerar os múltiplos níveis, desde o individual. Assim, sendo o indivíduo, um dos objectos referências da segurança, entende-se que esta última está muito além dos Estados, sendo ela um meio e a emancipação do indivíduo, a finalidade. Desta maneira, compreende-se a construção do conceito de segurança muito antes do surgimento das Relações Internacionais. Porém, após o nascimento da disciplina, o conceito ganhou novas forças e definições, indo da figura do objecto até a comunidade internacional. A evolução do conceito trouxe consigo, portanto, a evolução dos objectos referenciais e a antropomorfização do Estado, podendo hoje ser notadas em escritos da indispensável Escola de Copenhague e Escola Galesa de Segurança.
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